sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

Epitáfio mediocre


"Aqui jaz um homem que morreu de saco cheio"
Cláudio Colello não poderia dizer que teve uma vida ruim: deixou quatro filhos encaminhados, seis netos, uma mulher que o admirava, uma empresa bem-sucedida no ramo de auto-adesivos e uma casa de praia em Peruíbe. O velório foi prestigiado por mais de 500 pessoas.O típico homem realizado teve cumprido até o seu desejo final, realizado por um empreiteiro de túmulos intrigado e surpreso, ao custo de cerca de R$ 100. Colello quis, forjado em bronze, o epitáfio mais bem-humorado do cemitério: "Aqui jaz um homem que morreu de saco cheio".O que encheu o saco de Colello não foi nada de extraordinário, mas aquelas irritações cotidianas: "Teve um funcionário dele que precisou de uma ajuda financeira para poder morar. Aí, meu marido foi fiador e, no final, teve de pagar o aluguel". Conta Vilma. "Por isso é que ele encheu o saco".Segundo Máximo, o empreiteiro, placas de bronze duram para sempre "Se não forem roubadas, né?" - Ressalva: “O túmulo Colello já foi atacado. Levaram a cruz”.
-folha de São Paulo 02 de Novembro 2007-

* Ao ler esta notícia na folha de São Paulo fiquei pasmo,não pelo epitáfio ridículo que este homem "mandou" escrever em sua lápide,mas pelo olhar mediocre que se pode ter sobre as coisas quando esse olhar é totalmente comandado pela ótica do materialismo absoluto.Além dos bens materiais,nada tem sentido ou possui qualquer outro tipo de valor para esses olhos de "caixa registradora",o mundo se resume à contagem de cédulas e ao acúmulo das mesmas.
Uma semana antes de ler esta notícia,eu havia assistido o filme "Nós que aqui estamos,por vós que esperamos" de Marcelo Masagão, baseado no livro "A era dos extremos" de Eric Hobsbauwm.No filme são mostradas imagens do século 20,em que todas as pessoas já estão mortas.As imagens em sua maioria são tristes,terríveis,quase sufocantes.Mas são imagens reais,onde o que imperou foi a violência, a guerra,a fome,o preconceito,o fanatismo,o egoísmo,a tecnologia substituindo o homem...O filme é muito bom,além de ter uma trilha sonora absurdamente linda de Win Mertens.O diretor deixa bem claro no início e no final do filme porque que aqui estamos e o que nos espera,mostrando a entrada do cemitério.Isso é completamente existencialista,ao invés de sermos caixas registradoras,sejamos um "corpo" acumulador de coisas boas,que possuam valores que não possam ser medidos pelo poder do dinheiro.
Samuel Beckett disse que "a morte é a única verdade da existência humana".Também há o dito popular:"Existe remédio pra tudo,menos para a morte."Então vamos nos encher desse elixir maravilhoso que é a própria vida e que venham os problemas corriqueiros,pois para eles,temos remédios.
-Ninil-





Saco cheio de nada


Corre-se, se lhe apraz.
Não se corre,
se isso te satisfaz.
Caminha-se por caminhar
ou
algumas coisas te levam...
a caminhar.
Deixar o corriqueiro afogar os passos

Num infinito pântano de ninharias,
é não valorizá-lo como fragmento
necessário de um todo.

Morre-se sempre.
Morre-se triste, abruptamente,
calmo ou até de saco cheio,
tanto pior se estiver cheio...
de dinheiro,
pois em nada irá amparar
a alma cheia do nada,
acostumada a contabilizar
o todo como valor único,
tendo o corriqueiro
como mero fragmento dispensável.
Também a morte o leva por inteiro,
deixando para trás
olhares, estalar de dedos, respirações
amores,gestos, risos , sussuros
e tudo mais que compõe
esse todo do corpo.

Quem será o fiador dessa alma,
que acumulou tudo
e não traz coisa alguma?

Morre-se todos os dias,
assim como todo dia o dia morre
para que outro nasça,
assim como cada passo se finda,
para que o outro passo
anuncie sua vinda.

-


Ninil-2007

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