domingo, 6 de março de 2011

Poesia - Lee Chang-dong

"A palavra quando é criação desnuda. A primeira virtude da poesia tanto para o poeta como para o leitor é a revelação do ser. A consciência das palavras leva à consciência de si: a conhecer-se e a reconhecer-se."

Octavio Paz (de "A Propósito de López Velarde")









Poesia - Lee Chang-dong

Quem for assistir “Poesia” do sul-coreano Lee Chang-dong com aquele olhar preparado para uma invasão de sucessivas epifanias e de uma beleza plástica que remeta a alguns diretores orientais como Zhang Yimou, sairá frustrado da sala, pois o poético em questão é tratado do modo mais realista possível. Essa noção de que a palavra poesia de imediato leva a efeitos sinestésicos parece lugar-comum no cinema, principalmente quando o filme leva no nome esse substantivo. O próprio Aurélio define poesia como “Arte de criar imagens, de sugerir emoções por meio de uma linguagem em que se combinam sons, ritmos e significado.”


Bem, isso me parece mais uma delimitação do que o termo poético pode ter em relação ao que se espera de poesia e é justamente isso que o diretor desconstrói no filme: essa definição rasa que a poesia acabou tendo para a sociedade moderna. A poesia passou a ter um papel tal qual uma mera perfumaria que enfeitasse a superficialidade humana. Sabemos que a menor prateleira de uma livraria é a de poesia e que se algum poeta acha que vai ganhar a vida com livros de poemas, prepare-se para passar todos os tipos de necessidades possíveis.

Poesia vem do grego poíesis (de poien: ação de fazer algo, criar, fabricar, transformar. O poeta tinha uma função primordial na sociedade grega arcaica, pois dotado do dom da vidência, era o poeta que entrava em contato com o outro mundo, era quem narrava o feito dos Deuses e assim escrevia a história por ter um contato direto com a Verdade (alétheia), justamente por possuir a memória (mnémosyné). No entanto, houve um processo de laicização referente a esses portadores da verdade, numa substituição do pensamento mítico em prol de outro, onde a verdade era obtida somente através da demonstração e argumentação, o chamado pensamento filosófico.A poesia continuou atravessando os séculos como uma linguagem especial, mas aos poucos sua abrangência foi se tornando diminuta, como se o poder em conceder a verdade aos ouvidos modernos, ressoasse fora do tom ou simplesmente não fizesse mais sentido em um mundo, no qual o comércio e a praticidade dão sentido ao Ethos social.

Tudo isso foi colocado porque o filme se inicia com uma metáfora poderosíssima que remete a Heráclito, o qual disse que “nunca nos banhamos no mesmo rio” porque estamos em contínua mudança. O filme inicia-se com a imagem de um rio, crianças brincando ao redor e um corpo boiando na água, ou seja, vida, mudança e morte. Aos poucos estes três itens vão se apresentando à vida da protagonista. Mija é uma senhora de 65 anos que vive com o neto e trabalha como “cuidadora” de um senhor que aparentemente sofreu um AVC. Ela descobre que está com Alzheimer em fase inicial, que é chamado de demência, mas aparentemente isso não chega a abalá-la. Ela se inscreve para um curso de poesia e justifica-se dizendo que sua filha dizia que ela tinha poesia na veia porque gostava de flores e falava coisas estranhas. Descobre que o corpo que boiava no rio era de uma aluna que seu neto havia estuprado junto com outros colegas. Os pais destes outros alunos estavam tentando silenciar a mãe da menina morta com um acordo que envolvia dinheiro, pois eles “tinham pena da menina, mas isso iria destruir a vida de seus filhos”. É nesse contexto de poder, doença e hipocrisia que ela tenta desenvolver seu aprendizado de poesia.

Assim como o rio de Heráclito aparece no início, todos os acontecimentos vão passando por ela e desencadeando uma mudança significativa em sua vida, mediada pela concepção de que a poesia nos oferece um olhar diferente sobre as coisas, não é por acaso que ela tem Alzheimer, contrapondo a função da memória para os poetas gregos. Seu professor diz que a poesia é a busca pela beleza, mas sua realidade necessita de outro olhar poético que represente esse real, assim como Baudelaire se prontificou em fundar a poesia moderna usando os elementos cotidianos evitados na poesia.

O real vai sufocando o êxtase proposto pelo professor para a criação poética, o personagem não consegue escrever conforme a teoria proferida pelo mestre. Em determinado momento, quando ele diz que deve-se olhar a maçã de um modo diferente para compreendê-la, ela diz: “melhor comê-la, em vez de olhá-la”, assim ela passa a enfrentar os fatos conforme a realidade se apresenta e desta forma seu poema surge, assim como sua vida, embebido na mais pura realidade e sem desvencilhar o olhar na experiência que todo esse rio de fatos lhe trouxe.

A força deste belíssimo filme consiste, entre muitos atributos, na opção do diretor em seguir por uma via realista para tratar da “poesia”, já que essa se mostra abstrata e inatingível para personagem. Através desse real (compartilhado) o diretor mostra que a descoberta ou invocação da poesia se dá justamente pelo viver em si, com a dialética construindo as contradições e afirmações de cada um, mas exige que nossa totalidade (em contínuo aprendizado) busque (se necessário for) essa investigação e transformação do ser através dessa poderosa linguagem.

Ninil





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sábado, 5 de março de 2011

Benedito Nunes 1929 - 2011

Trecho de  "Hermeneutica e Poesia" pags. 74 e 75

"A ciência da linguagem costuma ter como prolegômeno o tão famoso esquema da comunicação. Há um emissor de signos e há um receptor, abstratamente isolados. Mas tanto o emissor quanto o receptor não são apenas sujeitos, mas também interlocutores. O fenômeno de poder falar um ao outro seria uma condição transcendental da linguagem... Mas duas outras condições também são pertinentes: o ouvir, o poder-ouvir e o silenciar. Ora, quando ouvimos, ouvimos sons configurados; ao ouvir uma melodia, ou distinguir uma harmonia na música, ou ao ouvirmos alguém falar, estamos voltados para a significação daquilo que nos é transmitido. A outra condição que nos parece notável e pode ser aplicada não apenas à interlocução cotidiana como também à poesia é a possibilidade de silêncio. Já o silenciar faz parte do falar. Há certas coisas que não dizemos expressamente e deixamos subentendidas. O silêncio delimita o “falatório”, uma espécie de objetificação da linguagem, nossas palavras transformadas em coisas reificadas. Na medida de um certo silêncio conseguimos, ás vezes, dizer melhor, seja falando ou escrevendo."

Benedito Nunes