sábado, 21 de janeiro de 2017

Espera





Espera

És manhã, tarde e noite.
Veste-me
com todas as cores do seu tempo.
Eu te aguardo
ansioso, ausente e colorido
no meio do dia cinza.

                                          Ninil G.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

Disrupção





Disrupção

Este músculo oco, cansado e insistente
retém em camadas subsequentes
cada instante ampliado em batidas
em ecos sutis sacudindo a epiderme,
espalhados pela caixa de ressonância
repercutindo o fremir em cada célula.
Este coração que recusa o silêncio
foi arrancado da terra num ímpeto
abandonado à solicitude do solo
tomado ao evanescente ritmo do tempo.

Restabelecido no ritmo pleno da duração
um novo gesto refazendo o devir renovado
desvendando essa docilidade vermelha
mesmo no suave deslizar da lâmina diária.
Carne pulsante aconchegada na palma da mão
medo, dúvida, poder, aflição, ansiedade
tudo vazando solenemente entre os dedos.
Batimento renovado em ritmo alheio
(des) fazendo-se em uníssona harmonia
até que surja furioso e inesperadamente
o silencioso e derradeiro corte.

                                                   Ninil Gonçalves




quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

Sebastião






Sebastião

                                          A Sebastião Salgado 



Ossos espalhados pelo chão
brinquedos possíveis
de uma verdade circundante
expondo a fratura dos dias.
Olhar de Sebastião tão doce
sobre o amargo que se derrama
na ausência de cores
na insistência das dores e horrores
na rudeza da ruga que se refaz
em beleza na lambida da luz
no dorido desbotado que se amplia na retina
dos olhos abertos da criança sem vida.
Explora a dor dos outros?
Acusação vociferada dos olhos fechados
ante aos que gritam sua dor diariamente
ofuscados pela luz que cega
o olhar limitado em si mesmo.
Sebastião,
olhar que não se basta de tão outros
desvendando assim como no nome
o sagrado de cada pedaço de vida
que se junta a cada lugar desabitado
a cada trabalho que se desdobra das mãos
a cada novo êxodo sofrido pelo corpo
na gênese reconstruída pela luz
no diálogo com o perfume das formas.

                                       Ninil Gonçalves


Foto: Sebastião Salgado (Terra)

quarta-feira, 11 de janeiro de 2017

Aula






Aula

                                                       À Ana Maria Haddad Baptista

O tempo redescobria-se entre as palavras
dispostas em formato único de decifração
daquilo que não pede para ser medido,
mas submete-se à mediação do pensar,
concretizando-se em tocável verdade.
Lousa infinita sorvendo vivos instantes,
transportados de espectros atemporais
à melodia rabiscada e revivida em pó.
Passos transitam o léxico em suave dança
alcançando a memória no exato momento
que cumpre o bailado impreciso do ser,
guiando  na precisão orquestrada do verbo
o olhar diluindo-se no esparramar contínuo
dessa amplidão vestida de pensamento.


terça-feira, 10 de janeiro de 2017

Liquidoficando (2011)



Liquidoficando

                                                                                                  a Zygmunt Bauman


Estou liquidado?
Creio que não!
Não no estado em que me encontro.
Apesar de tudo vazar-me incessantemente
desconstruindo o quase feito
o quase sólido, o quase algo.
A solidez programada decompõe-se
diluída numa estrutura erguida
sob a facilidade do efêmero
enquanto contínuo provedor
de necessidades cruciais,
crucificando a dificuldade
congelando o pensar.
Estou liquidado?
Não!
Estou mineralizando a sujeira
dissolvida em líquidos dias.

                                                 Ninil Gonçalves    




Meia-boca inteira






Meia-boca inteira

Embora o que ofereço é coisalguma
ou quase nada que não pague nem valha
o tempo afugentado por fastidiosa aventura,
ouso dizer que minha meia-boca
sorve em insaciável desmedida a inteireza
daquilo que a vida oferece parcamente,
degustando em ressignificação contínua
meiaboquíssimamente
o destituído de mínima valoração
ante a assoberbada avidez insípida da bocarra
que sequer saboreia uma fração da totalidade. 

                                          Ninil Gonçalves

domingo, 8 de janeiro de 2017

Cristina nos Olhos




Cristina nos Olhos

Lâmina negra desenrolando-se
rasgando o verde silencioso
afunilando o rumo certeiro
entre falantes memórias soltas
gritando passado em sussurros
de nítida atemporalidade verbal
destituindo da velocidade do olhos
o apreendido no raso da retina
restituindo o que se enroscou
no abismo profundo do olhar
espiralado ao primitivo instante
deitando-se em lembranças diárias
do ruidoso afago das esquinas
do insistente murmúrio das águas
na noite que nunca termina
no dia que nunca tem fim
na vida que anda a passos calmos
nos instantes que nunca se perderam
recuperados nos delicados acordes
que brotam entre pedras, gramas,
tijolos...
em cada passo que se perde
onde sempre me acharei.


                                            Ninil Gonçalves

quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

Sussurro




Sussurro

Alguma coisa dita
assim
ao pé do ouvido
traz
inteligível sussurro
entoando
a porção suficiente
daquilo
que grita no peito
surdinando
o alarido do corpo

                          Ninil Gonçalves

Releitura





Releitura

A mesma posição sempre
O caminho a percorrer inalterado
O bip do microondas  anunciando o jantar
A angústia manipulando atitudes
O despertador sacudindo o quarto
O sapato gastando-se pelas mesmas avenidas
As vinte e cinco mastigadas costumeiras
A mesma reza antecipando o sono
O sono prenunciando outro número no calendário
O peito vazio igual a ontem
O mesmo caminhar com o cachorro...O quê?
-Nunca empacaste desta maneira!
-Nunca latiu desta forma pra mim!

O instinto subvertendo regras

As posições improvisando temas
O caminho desenvolvendo-se a cada passo
O leite derramou no fogão
A angústia equilibrando atitudes
O sol derrubando as paredes
O chinelo arrebentou em alguma esquina
O sanduíche sendo dividido
O sono veio no meio da meditação
Os dias paridos na renovação do sono
O peito vazando novidades e incertezas
As patas perdendo-se pelas ruas...Quantas!
Nunca correste tanto como agora!
Nunca latiu tão euforicamente.  Nunca!

                                         Ninil Gonçalves

quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

Mecânica







Mecânica

Seria a lágrima
o combustível dos sonhos
vazando do tanque do peito
entupindo as velas do pensar
soluçando no escapamento da voz
desabando pelos faróis da alma
afogando o motor do coração?

                            Ninil Gonçalves

segunda-feira, 2 de janeiro de 2017

Sopro


Foto: Francis Wolff (John Coltrane durante a gravação de Blue Train)

.

Sopro
                                                               a John Coltrane

Ar que desconhece o espaço definido
esgueirando-se em rodopios sutis
excitando os infrenes brônquios
exímios dançarinos impulsionados
pelo invisível e poderoso alimento
fugindo  pela verticalidade infinita
dessa verdade quente e desmedida
que rasga em sutileza a garganta
enlouquecida ventania desabando
pelo vazio gelado do mágico tubo
fôlego adentrando tranquilamente
deslizando pelo silêncio metálico
aquecendo por inteiro esse corpo
em colorida e inesgotável abstração
lançada em brasa flamejante do  peito
desabando na quentura do sopro
possibilitando a intensidade do grito
desvendando o trajeto que se ilumina
transformando em notas ferventes
a invisibilidade aconchegando-se
na plenitude conquistada no som
lançada sobre o frenesi dos corpos
inaugurando espasmos contínuos
arremessando-os por todos os cantos
absorvidos no redivivo instante
erguido no  rodopio infinito do sopro.

                                    Ninil Gonçalves