quarta-feira, 31 de março de 2010

Lagrimando

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Lagrimando

à J.L

A mínima percepção de racionalidade
se apresenta
somente sob o contínuo e espontâneo
tremor labial
sufocando uma multidão de palavras
amontoadas
misturadas em profunda confusão
alfabética
constituindo uma linguagem que se mostra
impronunciável
estabelecendo o sussurro como discurso
remendado
tendo o soluço como pausa necessária
à continuidade
desse ininterrupto e infinito monólogo
desesperado
arrebentando todos os repletos diques
do peito
inundando a retina e todas as frestas
dos lábios
reavendo toda a salinidade necessária
ausente
na doçura programada de todos os dias
encharcando-os
da umidade roubada do cerne das coisas
cada célula
grita o peso impronunciável da racionalidade
que nos prende
ao palpável e risível instante de vida
cada lágrima
carrega em si o valor incomensurável
materializado
daquilo que conhecemos profundamente
mas se afasta
de qualquer provável linguagem elucidativa
de compreensão
desse instantâneo e inesgotável rio
que nasce
no recanto mais escondido do ser
vazando
abundantemente pela janela dos olhos.


Ninil





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sexta-feira, 19 de março de 2010

Jimi Hendrix - Valleys of Neptune

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Jimi Hendrix - Valleys of Neptune

A relação que a música pop tem com a morte precoce é algo realmente irritante, pois em todas as décadas surgem alguns mitos que serão lançados ao posto de gênio. Infelizmente alguns destes realmente são bons e não deveriam ter partido tão cedo, um desses casos é Jimi Hendrix. Nunca fui fã de guitarristas, pois os acho um tanto exibicionistas e o delírio que as pessoas sentem ao verem o deus solar sua guitarra é algo que me lembra torcida organizada na hora do gol, um verdadeiro delírio religioso.
Este não é caso do Jimi Hendrix e alguns outros mais discretos, mas o que acontece com ele é muito diferente, pois Hendrix colocou o blues num nível diferente de concepção musical, tudo é levado a um nível de experiência sonora inqualificável, já que ela rompe com os padrões de uma simples audição, elevando o ato de ouvi-lo à uma imersão em camadas sonoras cada vez mais alucinógenas, mas isso sem que qualquer substância altere a nossa percepção. Isso não é somente pela intensidade sonora que o The Jimi Hendrix Experience fabricava, mas pela forma como aquilo era feito.
Descobri Hendrix aos catorze anos e isso foi primordial para que eu deixasse de ouvir muita coisa. Minha mãe dizia que aquilo era uma “barulheira desgraçada” e não entendia como eu gostava daquilo. Era difícil ouvir Hendrix em casa, apenas minha irmã sentia a mesma simpatia por todas aquelas maravilhosas distorções.
Não fiquei empolgado com a notícia de mais um disco de Hendrix na praça, pois sempre que isso acontece colocam uma ou duas inéditas e o restante é material já conhecido e estão lá só para complementar o que falta para completar um disco e vender muito. Acho que como aconteceu comigo, muita gente quebrou a cara ao ouvir o “novo” disco do Hendrix, pois a maioria das músicas são inéditas e a qualidade do som é absurda, sim absurda! Fizeram um trabalho impressionante de estúdio que deixou o disco impecavelmente bem gravado.
Logo que fui comprar o disco não hesitei em pedir a um amigo de uma loja ( onde sempre compro e converso sobre o que estou comprando, pois comprar música é muito diferente de ir ao mercado) “você tem o novo disco do Hendrix”, só pra ter um gostinho de estar em 1968, ele percebeu a ironia e lascou “aproveita porque esse cara tá maluco demais, não dura muito.”
Mais surpreendente foi a audição de “Valleys of Neptune”, pois religiosamente me preparei para ser absorvido por toda aquela música, assim como faço com outras especiais. O tempo já estava se modificando a alguns minutos e naquele momento os relâmpagos estavam rasgando o céu numa quantidade absurda e os trovões davam aquela tremida no prédio, se eu fosse um pouco místico acharia que era o próprio Hendrix faiscando seus solos entre nuvens, mas sei muito bem que era uma típica chuva de verão Paulistana e das fortes. Não hesitei e deixei o disco rolar: Há tempos não sentia tanto prazer em ouvir algo, o disco é perfeito e assim como os outros trabalhos de Hendrix, a música entra pelos poros e leva para outra dimensão. A música que dá título ao disco é fantástica, mas a que me deixou mais impressionado foi “Hear My Train A Comin’” na qual as camadas sonoras produzidas pela guitarra se entrecruzam numa névoa enlouquecedora e deliciosa.
O que me deixa mais feliz ainda foi a decisão da família em colocar no mercado um disco em que a maioria das músicas são inéditas e pelo cuidado com que o som foi trabalhado em estúdio, pois a irmã de Hendrix vinha fazendo umas barbaridades com o vasto acervo que ele deixou, inclusive alterando capas clássicas como a do “Electric Ladyland” que tinha aquela capa linda do Hendrix envolto por mulheres nuas, que por questões religiosas da família foi modificada. Agora falta chegar o vinil, aí sim o estrago vai ser completo.
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Ninil Gonçalves







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Poesia

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Poesia


Dias atrás fui questionado sobre a real função da poesia, já que tinha dito a essa pessoa que não escrevia poemas por mero esteticismo, com a função de trazer a beleza das coisas ao meu redor, tampouco com a intenção de ganhar dinheiro, pois os livros de poesia são os que menos vendem e a maioria pouco se importa com essa linguagem que é lembrada somente quando alguém quer conquistar outra pessoa e procura por “poemas de amor” no Google e também nem sei se algum dia conseguirei publicar algo. Escrever poesia não dá dinheiro, veja o caso de Roberto Piva que está hospitalizado e sobrevivendo com a ajuda de amigos para a sua internação, mesmo sendo um poeta reconhecido e uma grande referência para muitos poetas. Li também num blog, que a poesia era apenas preguiça e indisposição em se fazer prosa, pois a economia de palavras era imensa e o trabalho de construção do texto bem menor. Ora essa! Isto é tão ridículo quanto dizer que algumas pessoas optam em fazer publicidade porque cinema dá mais trabalho e outros vão fazer arquitetura em vez de engenharia e por aí vai...
Fazer poesia é tão trabalhoso quanto fazer prosa, assim como é trabalhoso fazer qualquer outro tipo de trabalho bem feito, pois qualquer trabalho oferece uma determinada dificuldade, que somente através de um esforço físico ou mental poderá ser superada de acordo com o que se pretende apresentar como um trabalho realmente bem feito. Acredito que meus textos são interessantes dentro das minhas possibilidades, potencialidades e limitações, mas também acredito que posso melhorá-los através de pesquisas e estudos contínuos, mas também não quer dizer que algum dia eu faça algo realmente de qualidade. Acredito na poesia como um ponto de partida para uma importante reflexão social e ontológica, mas cabe a cada um essa interação com o elemento poético e a maneira como o ser se portará diante da recepção dessa linguagem. Uma das definições mais fantásticas e abrangentes sobre poesia, foi proferida por Heidegger: “ Poesia é a fundação do ser mediante a palavra” , daí eu acredito que parte essa reflexão sobre as questões existenciais através da linguagem escrita. Desde a Grécia arcaica a poesia foi utilizada como elemento de descobertas e investigações do ser diante de questões pragmáticas e metafísicas, mas com o tempo outras linguagens foram substituindo-a, até que seu espaço nas livrarias se resumisse á uma mera prateleira, refletindo sua relação com a sociedade.
Acredito também que muitas pessoas estão sempre buscando uma função para algo que realmente acreditam, como se isso fosse dar status de algo realmente relevante ao que se prontificam a fazer e que para ser visto como tal, existe a necessidade de um aval social para que sua relevância seja comprovada, esse simulacro exige que tudo tenha seu papel específico para que possa ser avaliado e rotulado com sua especificidade dentro do motor social, mas precisamos nos lembrar que esse motor é regido por elementos tão efêmeros que seu tempo de vida é tão breve quanto o outro que o substituirá. Diante de uma sociedade se utiliza destes padrões para a avaliação de todos as coisas, a poesia realmente não tem relevância, pois ela trata do elemento humano como sua maior matéria prima e este, diante do absurdo tempo de vida da Terra(bilhões de anos), nasceu ontem e para esse ser, Homero, Dante, Shakespeare, Milton, Cristo, Goethe...ainda fazem sentido e continuarão fazendo, pois como disse Baudelaire: “O que há de mais absurdo que o progresso? Já que o homem, como é provado pelos fatos de todos os dias, é sempre igual e semelhante ao homem, Isto é, sempre no estado selvagem.”
Como a poesia pode ser considerada coisa antiga se organicamente somos os mesmos como há milhares de anos atrás e se somos tão modernos, por que ainda continuamos carnívoros?


Ninil Gonçalves






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segunda-feira, 15 de março de 2010

A Ilha do Medo

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A Ilha do Medo


"Tudo o que o homem faz em seu mundo simbólico é uma tentativa de negar e sobrepujar seu destino grotesco. Ele literalmente se lança em um esquecimento cego por meio de jogos sociais, truques psicológicos, preocupações pessoais tão afastadas da realidade de sua situação que são formas de loucura:Loucura aceita, compartilhada, disfarçada e dignificada, mas mesmo assim loucura." Ernest Becker



Sempre que estréia um novo filme de Martin Scorcese, vou ao cinema com aquela expectativa de ver um trabalho acima do nível das coisas que geralmente inundam as telas por aí. Foi com essa expectativa que fui assistir “A Ilha do Medo”. Bem, posso dizer que este seu filme não apenas está acima da média de noventa por cento do que se produz por aí, como também é um dos melhores trabalhos do diretor, o que para ele que já fez tantas coisas relevantes para o cinema, não é pouco. Scorcese acertou tão em cheio, que a vontade que tive quando terminou o filme foi de assisti-lo novamente, de tão bom.
A história gira em torno de um detetive federal que vai investigar o sumiço de uma “paciente” que está detida na prisão psiquiátrica, que se situa na tal “ilha do medo”, dizer que a história gira em torno do detetivepode ser um erro, pois na verdade a história “flui” dele. O detetive é Teddy interpretado magistralmente por Leonardo DiCaprio, que assim como Robert de Niro foi um dia, já se tornou o preferido de Scorcese.
Ao chegar à ilha, o detetive percebe que as coisas são mais complexas do que aparentam e que existem muitas questões inexplicáveis além do sumiço da prisioneira. A partir do diálogo do detetive com os médicos responsáveis pela prisão é que as situações começam a se tornar mais confusas.
Deste momento adiante a realidade começa a se esfacelar e não temos mais certeza do que é real e o que é imaginação do detetive. Em determinado momento, num diálogo de uma médica que se esconde em um penhasco com o detetive ela diz: “É aí que as coisas se tornam Kafkianas”. Pois até o momento a realidade se diluía a partir do detetive, não como em Kafka, no qual o absurdo se mostra externo ao personagem e o engole por inteiro, num mundo onde nada faz sentido algum, mas o personagem tem noção que este absurdo vem de fora. Também podemos sentir em algumas cenas, certas sensações causadas por um “mundo” parecido com o de David Lynch, mas nesse caso, tanto o externo quanto a subjetividade do personagem embarcam juntas no onírico mundo de Lynch, então o detetive além de ser prisioneiro do seu real distorcido, fica também refém do simulacro onírico que lhe é imposto.
Scorcese consegue nos dar a sensação profunda dessa realidade que se esfacela a cada instante e a absurda vulnerabilidade diante dos fatos estranhos que se acometem sucessivamente ao redor do detetive. Essa sensação de vulnerabilidade diante do que pode ser confrontado racionalmente é mostrado num diálogo sensacional entre o diretor da prisão e o detetive, no qual o diretor da prisão questiona-o sobre uma possível realidade em que somente os dois estivessem vivos na terra e que ele o atacasse com uma mordida na face, de imediato o detetive lhe responde “experimente!”, como se realmente o diretor fosse lhe atacar naquele momento, mostrando que ele está mais próximo dessa irracionalidade do que supõe.
Como grande mestre da narrativa que é, o diretor aborda temas profundos sem ser redundante ou panfletário, além de evitar clichês durante todo filme. Ele aborda a questão da paranóia que tomou conta dos Estados Unidos contra o comunismo nos anos 1950 através do famigerado Mcarthismo, onde as pessoas eram investigadas até à medula em prol de um patriotismo exacerbado diante do medo da Guerra Fria, causando muitas prisões, mortes e suicídios. A questão dos traumas sociais também são bastante recorrentes no filme, pois o detetive Teddy vive se lembrando e sonhando com os momentos que passou na guerra, principalmente ao chegar a um campo de concentração nazista. Até que ponto os prisioneiros daquela ilha eram culpados por seus atos? Já que suas atitudes muitas vezes eram desencadeadas por questões traumáticas que foram adquiridas em conseqüência de suas participações em eventos dilacerantes como guerra e caos social, pois muitas vezes a participação do cidadão nestes eventos não se trata apenas de afinidade com questões que lhe são caras, mas na maioria das vezes por pura obrigatoriedade. Um médico da prisão diz a Teddy que o significado de trauma em grego é “ferida”, eles sabem que os pacientes daquela ilha possuem muitas feridas e a maioria delas ligadas à barbárie que arrasta os indivíduos a lugares, dos quais eles nunca voltarão a ser os mesmos, ás guerras e a sua dissolução do valor da vida à nada, à lobotomia que trata o ser humano como mero experimento científico e a falta de sentido de uma sociedade que prega a competição e aquisição de coisas como valores essenciais para se viver bem.O filme é sem dúvida alguma, perturbador no sentido de dissolução do que realmente é real e isso nos aflige um bocado, Scorcese sabe disso e não dá trégua, suprimindo-o mais e mais a cada momento do filme até seu desfecho. As cenas de lembranças do detetive até determinado momento são estruturais no desenvolvimento da narrativa, mas depois passam a ter um papel fundamental na desconstrução da narrativa linear para que o real se dissolva na sua totalidade.Filme de mestre à La Hitchcock que tem tudo para entrar na lista dos dez melhores filmes de Scorcese. Seria injustiça não falar o nome do escritor Dennis Lehane, autor do livro “Paciente 67”, no qual o roteiro foi adaptado, que também escreveu “Sobre Meninos e Lobos”; da roteirista Laeta Kalodridis e da música que deu uma potencialidade estupenda ás imagens.


Ninil Gonçalves




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terça-feira, 9 de março de 2010

Outro Silêncio

White Painting - Rauschenberg



Outro Silêncio

Não, não ouça nada!
Ou melhor:
Deixe que o supostamente nada lhe abasteça
das mais diversas formas que o silêncio vocifera.
Assim como a linguagem construída na improvável
e inconsistente ausência total de som
abastece a folha em branco de infinitas variações
sob o ruidoso atrito da ansiosa e vacilante caneta
na pauta desacordada,
sob a multiplicidade silenciosa que abarca o branco
ampliando a complexidade de sons e ruídos
condensados na identidade transfigurada
que inunda todo nada... ausente.

Assim como a musicalidade que brota do texto
no silêncio que invade os olhos,
referência total à desconstrução e descontinuidade
na relevante elaboração do som,
ampliando a infinita vociferação do silêncio
no extenso grito das moléculas
repercutindo em ecos cada vez mais intensos
quando o silêncio se faz grandiosidade ao redor,
não aquele que ilusoriamente se faz presente
sob forçado refúgio de formas inconsistentes
mas daquele cuja busca descortina as variantes
de notáveis notas inclassificáveis e multiformes
naquilo que antes se fazia apenas inexistência.

Ninil Gonçalves



4' 33" de John Cage