quinta-feira, 29 de abril de 2010

Nova Horto-grafia

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Nova horto-grafia

Perdi o acento da ideia
ao descobrir-me num voo
circunflexo ao meu signo
que se entristece ao fado,
enrosca-se no samba,
pinta-se de Crioulo
e delira no atabaque.
Perdi o assento da ideia
que já não fazia questão
de prostar-se em regras.
Alçou seu voo intranqüilo
espatifando-se diatônica
na música de cada verbo.

Ninil


*Horto (fig. bíblico) Lugar de tormento, por alusão ao Horto das Oliveiras.




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sábado, 24 de abril de 2010

Exílio na Palavra

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Exílio na Palavra

à Sílvia

Do alto de sua pequena estatura,
esse delicado anjo da palavra
traz um amontoado de signos
sob as asas sempre abertas,
espalhando no ar rarefeito
uma multidão de inquietações
amparadas por outras mais,
não se importando se a poucos
seu vôo captura dos vagos olhares,
o crescente brilho das úmidas retinas
acostumadas ao insistente veneno
paralisando todos os músculos,
sucumbindo o desejoso planar
á um esquálido e suplicante rastejar.

Recusando o vôo que conduz a ventos
amorfos e propício a rasantes limitados
exila-se em crescentes tempestades
nascidas nas superfícies de páginas
arrancadas do interior do peito
sacudindo a temporalidade provisória
do que se faz mero sopro efêmero
despedaçando a condução do simulacro
em meros dejetos de algo inútil,
desfazendo os cachos do improvável
misturando-se aos olhares estupefatos,
cúmplices do mesmo ininterrupto vôo
nesse turbilhão brotando de cada página.

Ninil


Anselm Kiefer, Buch mit Flügeln, 1992-1994.
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quarta-feira, 21 de abril de 2010

Remédio

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Ilustração: Charles Bell. (1865). Do livro "The anatomy and philosophy of expression: as connected with the fine arts"


Remédio

Ávido olhar buscando a posologia
na bula que justifica a necessidade
do remédio que envenena os olhos,
a boca e todas as ansiosas células.
doce-feroz toxina que flui dos poros
inundando o ser da bem-vinda doença,
implodindo os enlouquecidos termômetros
ensurdecendo o ritmo dos estetoscópios
amenizando o batuque desenfreado
que silencia o corpo por inteiro.
Posologia que pede utilização completa
do que está contido em todo frasco
num único e derradeiro gole.
O silêncio da farmácia vazia
grita as dores contínuas do corte
ansiando ser impetuosamente preenchido
não pelas inúmeras poções tranqüilizadoras
mas pelos invisíveis remédios escondidos
no brilho líquido das retinas
no calor explodindo o peito
em cada gota de suor fluindo
revitalizando a vacilante carcaça
inundando-a do amargo remédio
transfigurado em néctar necessário
Aquiescendo à vontade da ferida
Amenizando o grito do que é incurável.

Ninil





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quinta-feira, 15 de abril de 2010

Céu - Vagarosa


foto: Marina Rebouças

Céu – Vagarosa

Mesmo tendo passado um ano de seu lançamento, não é tarde para falar do maravilhoso disco “Vagarosa” da Céu, mesmo porque quando a música é boa, ela é atemporal e com o passar do tempo ela vai se tornando mais saborosa, oferecendo o verdadeiro sabor de seu tempero.
Além de possuir aquela voz belíssima, ela é dona de uma beleza que me faz abraçar a expressão(que se torna clichê por se relacionar com seu nome) é que estamos realmente no céu ao vê-la e ouvi-la. Prometi não escrever isto, mas não dá para evitar, ela é linda.
Da mesma maneira que o primeiro disco, este “Vagarosa” já seduz de cara, pois as músicas são todas boas e a produção um primor. Agora, o que acontece após as contínuas audições, é o que realmente dilacera. Os arranjos nos conduz por caminhos nada óbvios e muito criativos. Cada instrumento é explorado minimamente, com uma precisão harmônica de fazer inveja a muitos veteranos, dando uma riqueza de elementos sonoros como uma paleta de mestre. Os motivos para tanta criatividade são explicados, ela viveu rodeada de música a vida inteira, mas muitos vivem e não possuem essa força criadora.
As influências sonoras são muitas, mas nenhuma delas é abertamente convocada, todas são sutilmente exploradas e ás vezes se misturam de maneira desconcertante: O samba “Sobre o amor e seu trabalho silencioso” que só tem cavaquinho e voz, se une a “Cangote” por um chiado de vinil, então começa o deleite que vagarosamente vai tomando conta dos sentidos.
A música da Céu não dá para classificar, chamar só de MPB é tirar méritos de alguém que se mostra conhecedora de muitos sons e os utiliza de maneira singular. Tanto no maravilhoso arranjo para o trombone de “nascente”, quanto nos discretos e certeiros scratches, passando pelas inserções de ruídos que lembram o Portishead. Ela mantém as tradições e a enriquece com elementos modernos que não são utilizados como meros complementos e sim pinceladas sonoras nesse amálgama poético. Em “Rosa Menina Rosa” percebemos essa reverberação sônica que traz estes elementos e transforma a música de Jorge Bem numa grande viagem.
A delicadeza de sua voz deita suavemente sobre o tímpano e este se acostuma e não quer saber de outra coisa, seu canto é algo que há muito não se via no Brasil. Apesar de ser um país de grandes cantoras, ela se coloca como referência dessa geração de novas e boas cantoras, não é à toa que está sempre sendo requisitada para shows no exterior, mesmo sendo uma cantora nova, só com dois discos lançados.
“Bubuia” é uma das coisas mais lindas que já ouvi até hoje, mas “”Grains de Beauté” é dilacerantemente bela, sua voz faz um vôo sereno e lânguido sobre um blues estruturado no baixo e na bateria. Aos poucos esse vôo vai mostrando um timbre que lembra Billie Holiday nos seus momentos mais serenos e belos.
As razões da grandiosidade deste "Vagarosa" são muitas, desde a esmerada produção, passando pela afinidade e qualidade dos músicos, complementando com o amplo diálogo com os mais variados ritmos, que não se apresenta como mera demonstração de ecletismo, mas sim, de ecos das inúmeras referências musicais de todos os envolvidos no trabalho e elas surgem naturalmente no resultado final.
É um belíssimo trabalho em conjunto, mas o que realmente faz a diferença é a presença da Céu. Suas letras são muito boas e espertíssimas, a voz transita da leveza absoluta aos timbres mais ritmados e suingados, com pureza e precisão.
Para aqueles que acreditam que o céu é o paraíso, o regozijo é pleno em encantamento pela angelical voz dessa deusa do canto. Para aqueles que veem uma grande verdade na frase de Aldous Huxley: "Além do silêncio, o que mais se aproxima e exprimir o inexprimível é a música", a voz da Céu traz todos os elementos de uma expressão artística de alto nível e eleva nossos sentidos ao mesmo patamar.

Ninil




domingo, 4 de abril de 2010

Domingo

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Domingo

Amparando-me num domingo
a chuva chegava intermitente
lavando a solidão da cadeira
postada no horizonte descoberto.
O silêncio deitando-se nas frestas
simulando convidativos abismos.
A cortina volteando-se lentamente
nas contínuas coreografias do vento.
O batuque silencioso na almofada
acordando a cauda da cadela.
A gota de água vibrando no trilho
calado da escancarada janela.
A música calou-se por instantes
para que o silêncio fosse notado.
O silêncio derramou-se ao redor
Para que todas as coisas gritassem.

Ninil


Fotos: Ninil