domingo, 29 de março de 2009

Condução

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Condução

Antes que eu me torne coisa alguma
dê-me o tempo que gastei em lugar algum
procurando aquilo que nunca quis
que nunca vi, nem sabia o que era.
Dê-me o passado que não vislumbrei
diante do construído ao meu redor,
esboço único do mundo calculado
implantado na complacência cega
caminhando aos contínuos solavancos
no mero formato cabível de locomoção.
Não me dê mais nada!
A folha puída e em branco que arranquei,
recoloquei-a com o necessário cuidado
como complemento insubstituível do ser,
inaugurando o vazio seguinte
ansioso por rabiscos e linhas indefinidas
faminto por descaminhos e trilhas
que preencham toda página.

Ninil


quinta-feira, 26 de março de 2009

Fogoesia

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Fogoesia

Avesso do osso roído diariamente,
distante do credo que cinge os corpos
em mínimo espaço de calculada asfixia.
Áspera língua encharcando as calçadas
de escorregadias aflições diárias,
desconstruindo os programados passos
na imprecisão do instante que surge
vociferando-se existência autônoma
diante daquilo que sucumbe
ao freqüente atalho do óbvio.
Face desprovida dos singelos traços
de uma moldura bem trabalhada,
organizando as cenas decoradas
na continuidade prescrita.
Brasa reticente aguardando ansiosa
a chama brotar do fundo dos olhos,
incendiando o pavio da outra voz,
sufocando isqueiros e lança-chamas,
descobrindo em quase tudo
as imprevisíveis e descontínuas faíscas,
irradiadas na cumplicidade de novos
e necessários incêndios.





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sábado, 21 de março de 2009

Radiohead




Ruidosa Absorção (Radiohead)

O ruído surge já se decompondo
sob a mastigação de outro tão breve
quanto aquele que irá subtraí-lo,
constituindo a fracionada síntese musical
no interior de sobrepostas camadas melódicas
instauradas sob a perspectiva de uma paralaxe
erguida na distorção proposital e inevitável
da infindável construção do corpo do som,
costurada na lógica desesperadora do ser,
espalhando-se pelos cantos da casa,
entre panelas, livros, roupas, chão,
parede, plantas e animais reais.
Recolhendo-se devidamente no amplo espaço
receptivo e faminto do peito,
implodindo cada ínfima fração modelada
sob o signo daquilo que é formulado,
despedaçando e renovando
a amplidão ávida e insatisfeita,
aguardando mergulhos profundos
e continuamente devastadores.

Ninil




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domingo, 15 de março de 2009

Leitura

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Leitura

Sozinho, taciturno e ausente,
afundava no livro os pesados olhos.
Ao contrário do estimulante começo,
passou a engolir vorazmente
todas aquelas suculentas páginas
e as passava como se contasse
o dinheiro acumulado do mês.
O prazer e a alegria da leitura
transmutou-se em pura obrigação.
O Carrinho de Mão Vermelho,
A Máquina do Mundo e A Flauta Vértebra
tornaram-se imperceptíveis ante
a atroz velocidade das pupilas
varrendo o amontoado de frases.
O freio do tempo e as cartas da razão
trouxeram de volta as vírgulas, os pontos
e o signo desabrochando cuidadosamente
sob a cuidadosa acuidade visual.
Hoje, quase não tropeças mais nas palavras,
as frases surgem debruçadas sobre a corda bamba,
cada passo é um desafio antecipando outro.
Sabe quando a dor não passa de terna alegria
e quando a alegria se dissolve em dor.
De todas as lágrimas que molhavam
a totalidade de uma página,
resta apenas uma
percorrendo suavemente as mesmas palavras.

Ninil







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quarta-feira, 11 de março de 2009

Hipocrisia

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Sub-Missa


A longa e inextinguível vela
derrama pela parede gelada
uma dança de sombras aflitas,
contrastando com o brilho da chama
que arde entre a frieza do mármore
e a insistência de olhares engessados,
conferindo ao desmedido e irresistível ato
o caráter de implosão da suposta verdade,
logo restaurada sob a despótica e usual vestimenta.
O cálice irradia a interminável luminosidade,
ansiando o jorro contínuo de sangue
cristalizar o esgoto obscuro das veias,
insufladas na naturalidade recusada,
sepultando a inquestionável função do viver.
O incenso e o sangue fervente
intensificam o crescente rubor
da contorcida e branca face.
O balanço do crucifixo de madeira
é interrompido por abruptos solavancos,
envoltos no respirar entrecortado e gemidos sufocados.
A batina pende como longas e chacoalhantes asas,
caídas pelo abundante e suado dorso.
Olhos revirados , pousando o rosado mármore,
espalhando num estridente e estranho eco
o ruidoso arfar do satisfeito corpo.
O brilho do grosso e invejável anel
irradiando aura de poder e domínio,
reflete nos olhos e na sufocada alma
daquele que cumpre em silêncio,
o dever distorcido no dogma,
obstruindo prováveis percursos
do já calculado e estreito caminho.
Culpa e satisfação alternam-se
entre soberba e silêncio absoluto.
O grito sufocado instaura nos agitados corpos
o instante mergulhado em contrição e vergonha,
desconstruindo o incalculável valor do momento.
A porta da sacristia se abre.
As faces embevecidas e anestesiadas,
fartam-se no regozijo sublevado num coro.
O altar ergue-se na recompensa e no redimir
dos lentos e absortos passos programados.
o caminho a percorrer constrói-se
sob a alegria flutuante de um
e a angústia que se arrasta do outro.
O sagrado derrama-se em cada partícula
do murmurante e expiatório ambiente.
O silêncio instaura-se abruptamente
diante dos olhares suplicantes e aflitivos
numa onda de penitências e culpas,
orquestradas na ilusória condução
daquele que carrega entre os lábios
a suposta transmissão da verdade.
Os olhares se cruzam diante do cálice,
redimidos numa cumplicidade conquistada
sob o peso de uma eternidade construída
na medida única que lhe cabe como humano.
Mero espaço de cárcere contínuo,
acorrentando a infinita locução do ser
a um mínimo ponto insaciável de poder.

Ninil







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sábado, 7 de março de 2009

Re-feição

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Re-feição

Estatelou-se no escuro e insípido caldo,
ampliando o notável sentido de alimento
conferido aos mínimos e envelhecidos grãos.
A lágrima se misturava ao mínimo fio de expectativa,
brotando em parcas porções diárias
sob o amparo espontâneo e urgente
daquele que já vestiu a mesma dor.
A transparência cristalina homogeneizava-se
lentamente ao descaracterizado revigorante,
sorvida em trêmulo vôo,
mornamente se esparramando
na amplitude povoada de dores
do amargo e intranqüilo peito,
visitado continuamente por longínquas vozes,
fortalecendo o fragmentado rumo iniciado.
Os grãos giram ludicamente enlouquecidos
no frenesi instaurado nos pequenos risos,
desconhecendo a aflitiva e dolorosa névoa
que envolve o contraído e sufocado corpo,
descobrindo nas vicissitudes e atalhos
o valor dos contínuos ecos da construção.
A opacidade de um olhar contrasta
com o faiscante e infinito brilho da outra retina,
iluminando todo o espaço circundante.
Aos poucos refazendo-se em espesso caldo,
cozido na intensidade incomensurável do ser,
temperado pelo fluxo contínuo de magma,
instaurado na invisibilidade necessária
aquilo que reintegra a linha perdida dos dias,
estabelecendo no movimento das rugas
um contínuo refazer da feição.

Ninil




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Sinal fechado

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Vermelho

O calor,
a tristeza, o sinal, o vermelho.
O garoto, a flanela, o sabão.
A recusa, a insistência, o olhar.
O porta luva, a lembrança, o caos.
O pára-brisa, a brisa ausente.
A ausência...
A roupa imunda, o traje perfeito.
Ansiedade galopando.
O malabarismo, o riso. O riso?
O porta luva, a arma.
A lágrima, o sangue, o susto.
A inércia, a interrogação, o carro.
As pessoas, as lágrimas, o IML.
A fome, o barraco, a mesa.
O dente quebrado, a bebida.
O olhar, a insistência, a recusa.
O sabão, a flanela, o garoto.
O vermelho, o sinal, a tristeza.
O frio.

Ninil




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terça-feira, 3 de março de 2009

Um pouco acima dos olhos

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No meio da testa

Postou-se ante um deus
que muitas vezes já fora.
O suposto signo de infindável grandeza
espremendo-o ao mínino extrato
da insignificância absoluta,
sublevando em segundos
o existir negligenciado
e aquilo que deixa de ser inaugurado.
O olhar suplicando a vinda
do instante que se ergue na dúvida.
Dúvida e certeza se chocam
no traço diagonal da visão.
Joelhos trêmulos, ar rarefeito.
O aço instaurando em linha exata
o mínimo instante de desconstrução.
A maquiagem usual dos fugidios dias,
inundando todo rosto e o chão do bar imundo.

Ninil





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