sábado, 30 de janeiro de 2010

Sentidos

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.Hilary Page - "Recumbent nude"

Sem anestesia

à J. Lopez "Sinestesia"

A melodia que envolve os sentidos
no sentido em que a língua descaminha,
usurpando o fluxo salino dos poros
afogando-os na sede que inunda a seda
contorcida na sensibilidade explosiva,
prolongada sob infinitos espasmos.
Deslizando da rigidez dos cumes
à quentura umedecida dos sonhos.
Sem anestesia.
Os sentidos receptivos e vulneráveis
à música que silencia a razão,
elaborando num mínimo gemido
a indefinível sinfonia dos sentidos,
desconstruindo-os da mera função
receptora e limitadamente orgânica,
sublevando-os ao ponto central
da mais intensa e silenciosa explosão.

Ninil




Foto:Malcolm Pasley

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domingo, 24 de janeiro de 2010

Acorda! A corda...

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Acorda! A corda...

à Sandra A. Bragança (1976-2010)

O silêncio fez-se totalidade no frágil corpo
acostumado aos sacolejos emanados do riso.
Habituado à correnteza furiosa do sangue
irrigando o motor que mal cabia no peito
engrossando tudo aquilo que vinha rarefeito.
O riso que rasgava a quentura da garganta
desabou na imobilidade fria e muda da língua
aprisionado na rígida prisão dos dentes.
A imobilidade abraçou os pequenos pés
acostumados à fúria dos passos infantis
que te cercavam em enlouquecido balé
instalados na absoluta liberdade de movimento
coreografando a contínua anarquia dos seres
que conhecem a essência da marcha do ser.
A cortina desabou ante o constante brilho negro
que reluzia ás opacidades insistentes ao redor.
A lividez do rosto de eterno clown
empalideceu-se na fuga de todas as cores
de todos os horrores, de todos os amores...
O término não teve o ponto final de uma bala
tampouco a exclamação de uma lâmina.
Teve a corda como um abraço sufocante,
talvez tentando acordá-la do contínuo sono
impregnado nessa imensa sombra que a soterrou.

Ninil





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segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Rancor

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Rancor

Gotas lentamente se desprendendo
da atemporalidade insalubre do peito
inundando a totalidade do instante
que inaugura veemente no ódio
única moradia amplamente aceitável
e condizente ao ininterrupto rosnar.
A recusa no passado como mestre
nos passos e na contínua construção
fizera-se bandeira aflita da inércia,
sacolejando apenas ao odor impuro
impregnado em cada mínimo músculo
invadindo os passos que se movem
no mesmo quase- espaço eternamente
ampliando a infinita amargura abismal
cavada no ponto mais sublime do peito.

Ninil




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sábado, 16 de janeiro de 2010

A Miséria do Haiti

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A Miséria do Haiti

Poderia ser uma grande ingenuidade ou uma provável ignorância, relacionar a catástrofe ocorrida no Haiti, com questões políticas e sociais, já que foi devido a um fenômeno natural que toda essa desgraça se deu. Alguns fatores construídos num passado de colonização e exploração podem ter ajudado a chegar a esse número absurdo de vítimas, pois num país onde oitenta por cento da população vive abaixo da linha da miséria, a construção das casas e barracos são no mínino precárias, até mesmo para se levantar vigas que podem ajudar na estrutura da edificação, evitando que as paredes caiam como uma casa feita de cartas de baralho. Sabemos através de inúmeros fatos históricos, que todos os países que vorazmente colonizavam os “paraísos selvagens” tinham como único intuito, a exploração total, inclusive dos seres que ali habitavam e isso não foi diferente com o Haiti.
Segundo Milton Meltzer, no livro “A História Ilustrada da Escravidão”, no século XVIII “Proporcionalmente a suas dimensões, nenhum país do mundo produzia tanta riqueza quanto o Haiti” (pag. 324) e “A prosperidade que brotava do solo do Haiti graças ao trabalho dos escravos, trouxe novas riquezas para a burguesia francesa...ela (a França) acreditava que suas colônias existiam somente para o lucro da pátria mãe...Os colonos eram obrigados a comprar todos os artigos manufaturados na França.” (pag. 327) “milhões de franceses passaram a viver melhor por causa delas.” (pag. 328).
Não posso deixar de incluir um trecho colhido por Milton Meltzer do livro "The Black Jacobins, Toussaint L’Ouverture and San Domingo Revolution", de C.L.R. James, que apesar de não ser diferente do tratamento dos escravos em qualquer lugar do mundo, choca e revolta. “ Não havia engenhosidade que o medo ou uma imaginação depravada pudesse arquitetar”...”máscaras de lata para impedir que os escravos comessem a cana de açúcar”...Sal, pimenta , cidra, brasas, aloés e cinzas eram derramados nas feridas abertas...Os senhores derramavam cera quente nas mãos e nos ombros dos escravos, cana de açúcar fervente sobre as cabeças, eram queimados vivos, assados em fogo brando, enchidos de pólvora e explodidos, enterravam até o pescoço e lhes cobriam a cabeça com açúcar para que as moscas e formigas pudessem devorar”
As descrições são muitas, mas já é possível ter idéia do que os franceses faziam com os antepassados daqueles que agora estão sob o concreto ou levados de trator para uma vala comum. Os descendentes dos franceses que cometiam todas essas atrocidades não estão em débito algum com o os haitianos devido ao que ocorreu no passado, mas uma das definições para palavra história é: “A ciência que estuda o Homem e sua ação no tempo e no espaço, concomitante à análise de processos e eventos ocorridos no passado”, por isso rever questões do passado é importante para se entender o que acontece agora, não da catátofre natural, mas da miséria do país. Quando toda a riqueza natural de um país é usurpada, tornam-se escassos outros meios de voltar a ser o que era, principalmente para uma ilha.
Talvez o Haiti possa ser considerado um país africano fora da África, pois tudo remete ao continente, da etnia ás questões sociais e o Haiti só fica atrás do Brasil em número de escravos traficados: 864.000. O Haiti conquistou sua independência através da revolução dos escravos e isso custou caro, pois além da fúria de Napoleão, o boicote ao comércio com a ilha foi se expandindo. O líder da revolução dos escravos, Toussaint L’Ouverture foi sequestrado e levado até Napoleão, que o prendeu em uma masmorra e ordenou fosse torturado e morresse de fome e frio. Quando Napoleão tornou-se prisioneiro em Santa Helena, perguntaram sobre o tratamento dado a Toussaint L’Ouvertrure, ele disse: “Como poderia me interessar a morte de um mísero negro.” (Meltzer, pag. 342)
Acredito que ser um país bem sucedido na América Latina já é difícil, isso se torna mais complicado quando se é um país que foi explorado, boicotado, politicamente deteriorado e ainda por cima alvo de catastrofes naturais. Assim como outros países que sofrem todas essas intempéries climáticas e que estão sobre placas tectônicas, o Haiti precisaria se precaver com construções que são próprias para estes lugares, as chamadas construções anti-terremoto e não construir barracos que nem vigas possuem, já existem muitos mecanismos tecnológicos que ajudam a amenizar a destruição causada por tais eventos. Talvez isso fosse possível, já que o Haiti “proporcionalmente a suas dimensões, era o país que mais riqueza produzia no século XVIII” como disse Meltzer, não tivesse suas riquezas usurpadas pelo colonizador parasita, que chega, se instala e suga tudo que for possível.
Este texto não tem a menor pretensão em afirmar ou atestar que a miséria no Haiti se estabeleceu devido ás questões acima citadas, tampouco tal material poderia fornecer uma análise convincente, estando amparada em tão minúscula reflexão, já que se trata de um assunto que muitas vezes ultrapassa as página de um grosso volume e também envolve questões mais complexas que podemos supor. Mas não posso deixar de afirmar que o processo colonizador exploratório e cruel sofrido pelo Haiti, deixou profundas marcas que se prolongaram muito além da tão difícil e sacrificante liberdade.


Ninil




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quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Café da Tarde (em Porto Príncipe)

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Café da Tarde

Debandou em tresloucada corrida.
De riso em riste e pés displicentes,
o miúdo dinheiro sufocado e úmido
na firmeza ininterrupta dos dedos.
Os pães amassados e endurecidos
se aquecem junto ao resfolegante
pedaço do mundo que se agita
e se avoluma dentro do peito.
A brincadeira fica para depois,
pois à mesa,
amassadas canecas se afogam
no negrume saboroso e quente.

De nada adiantou a tresloucada corrida.

Os dentes do solo rangeram
e os passos confiantes cederam.
A pressa foi estilhaçada abruptamente
pelo ronco irrompido da terra
engolindo os passos descalços
e a quentura do insistente peito.
Os dedos em ininterrupta firmeza
não sentem mais a dureza dos pães.
Na mesa a espera interrompeu-se
na mais longa e inesperada pausa.
Sob a espessa camada de poeira,
o café derramado e os corpos esfriam.

Ninil



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quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Axis mundi - Nelson de Oliveira

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Axis mundi – O Jogo de forças na Lírica Portuguesa Contemporânea. Nelson de Oliveira

O novo livro de Nelson de Oliveira lançado pela Ateliê Editorial, trata da recente cena poética de Portugal ou, mais especificamente, de dez poetas que ele considera os mais importantes nesse jogo de forças da lírica portuguesa atual. O livro é o resultado da sua tese de doutorado e, diga-se de passagem, um estudo maravilhoso sobre poesia.
O livro não se resume apenas a um estudo aprofundado sobre estes poetas portugueses, mas traz um esboço muito bem traçado de toda lírica portuguesa, mostrando o quanto o autor se dedicou ao estudo de seu tema. Nelson de Oliveira não se contenta em permanecer apenas nas questões que envolvem o substrato da lírica destes poetas e busca em autores seculares, os elementos característicos de cada época e cada autor selecionado, para mostrar o desenvolvimento dos elementos essenciais da lírica portuguesa.
Além de toda riqueza empírica que o autor imprime à obra, ele também discorre sobre questões sociais e subjetivas que cada época impõe sobre os aspectos cruciais que cada obra carrega como valor histórico e social. Em alguns momentos percebe-se um profundo senso crítico das questões sociais que levaram os autores a percorrer determinados caminhos que se mostravam única via para o desenvolvimento de sua obra.
No capítulo I, chamado “O que é poesia?”, Nelson de Oliveira busca uma definição para essa linguagem e lista algumas de autores famosos que são no mínimo belíssimas, mas descontente com a limitada abrangência que essas definições podem oferecer ao seu elemento de estudo, busca em Bakhtin, num estudo de Cristóvão Tezza, os elementos necessários para uma provável e mais abrangente definição, mas a definição do grande filósofo da linguagem, mesmo se mostrando engenhosa, apresenta alguns problemas, e que segundo o próprio Nelson de Oliveira, acaba dando margem a lacunas. Diante de tudo isso, o autor radicaliza e elabora a sua própria definição do que é poesia, sendo de certa forma até irônico com ela, mas mostrando de que maneira essa definição poderá facilitar seu estudo.
Ao longo do livro notamos o quanto é imenso conhecimento do autor sobre as questões abordadas e que suas leituras lhe forneceram uma vasta e sólida estrutura para a compreensão dos autores estudados. Suas inquietações diante dos aspectos sociais que limitam e estreitam a experiência humana em sua totalidade são no mínimo essenciais e que colocam a poesia como grande catalisadora de experiências reais e significativas para o desenvolvimento humano. Em um dos muitos momentos significativos do livro, Nelson de Oliveira diz:
“ Hoje, depois de décadas e décadas de distanciamento crítico, sabemos que tanto a religião como a ciência não são duas formas de ver o mundo, são antes duas formas de aceitar o mundo. Ambas dão explicações categóricas sobre o universo e seus fenômenos naturais intrigantes, explicações cujo principal objetivo é reconfortar os que sabem que vão morrer. Porém o indivíduo comum, incapaz dos grandes vôos reflexivos, não tem acesso a suas raízes profundas e a suas equações fundamentais. A ele, impedido intelectualmente de compreender os pressupostos, cabe apenas escolher uma dessas duas formas e seguir as prescrições sem hesitar.” (Oliveira, pag. 61, 2009).
Na outra metade do livro, Nelson de Oliveira discorre sobre os poetas escolhidos, um a um, num estudo sério que mostra os elementos constitutivos da lírica de cada um deles, sem que qualquer traço de algum vínculo emotivo se sobreponha à sua empreitada crítica, que se mostra extremamente valorosa para a compreensão de cada autor.
Este Axis mundi de Nelson de Oliveira, além de um profundo estudo sobre a lírica portuguesa de outrora e atual, também é uma grande reflexão sobre o quanto a poesia tem a oferecer como elemento de questionamentos e descobertas. Mostra também a relevância da poesia como uma imensa força estruturada na linguagem que possibilita um diálogo mais profundo do homem com questões históricas, sociais e espirituais, que muitas vezes escapam daqueles cuja linguagem não ousa ir além daquela oferecida pelo simulacro, impossibilitando o grandioso vôo a que todos têm direito.

Ninil Gonçalves





Foto: Tereza Yamashita

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