quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Anticristo - Lars Von Trier

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Anticristo

Pavoroso, escandaloso, horrível, cruel, obsceno...estas foram algumas das expressões utilizadas ao redor do mundo para definir o último filme de Lars Von Trier: Anticristo, desde que foi lançado em Cannes. Classificaram o filme como sendo de terror, fui assisti-lo munido com as inúmeras reservas que tenho a esse gênero, já que o festival de clichês que brota da tela se transforma em um terror real e me faz sair em disparada. Na verdade o que aconteceu ao final do filme foi uma sensação de angústia e alegria misturadas, que somente um grito intenso materializaria o que aconteceu comigo.
O filme é belíssimo e o horror que apresenta é aquele que o próprio ser humano constrói, ou seja, nada que possa se mostrar tão ou mais apavorante em relação ao que se pode esperar de atitudes humanas. Se fosse um filme de terror comum, com zumbis caindo aos pedaços, cabeças sendo cortadas e demônios arrancando vísceras... muitos críticos não apontariam como coisas terríveis. Mas como se trata de um artista de primeira grandeza, que faz cinema na sua essência e utiliza a arte como provocação e questionamento profundo de questões relacionadas ao ser humano e suas inquietações, as coisas tomam outra direção, pois eles conhecem o poder da arte.
Não discordo que sua lente possui aquela nitidez que incomoda e fere, mas também não vai além do que é produto de atitudes do próprio homem. Este filme está carregado de uma infinidade de simbologias e não é à toa que ele o dedica a Tarkovsky.
A cena inicial é impressionantemente bela e dolorosa, onde sexo e morte, prazer e dor se misturam, já anunciando que estamos adentrando um mundo carregado de coisas que nos deixarão desconfortáveis na poltrona...melhor assim!
O fio condutor da história é a morte do filho por um provável descuido dos pais. Isso gera na mãe um descontrole total de sua existência e nada mais faz sentido. Seu marido é um terapeuta que tenta  reverter essa situação. Ele quer saber o que mais causa medo à sua esposa desesperada, para que possa trabalhar em cima desse medo e fazer que ela se fortaleça após o luto. Ela diz que o que lhe causa mais medo é a floresta. Então eles partem para um chalé onde as coisas realmente serão alçadas a um diálogo com todos os valores e crueldades possíveis.
A meu ver este filme remete, no mínimo, a três questões essenciais na história da humanidade: O cristianismo, a mulher e a violência, sendo a questão relativa à mulher o que mais me chamou a atenção. Talvez possamos até dizer que se trata de uma ode à mulher, mesmo com toda crueldade que perpassa toda película, mas lembrando que nada advém da gratuitade nos filmes de Lars Von Trier.
 Digo ode à mulher, pois acredito que, o desencadear de todo o processo destrutivo da mãe, foi causado por sua obsessão em terminar sua tese sobre femicídio. O cineasta deixa bem claro pelos lábios do marido que o século XVI foi o mais devastador para a história da mulher, deixando explícito com a fogueira no final, mas não ameniza as épocas posteriores à idade Média, sempre lembrando questões que são impostas à mulher, explicitando a violência sexual.
Sobre o cristianismo o próprio título já se prontifica a mostrar ao que veio. Não podemos esquecer o que Nietzsche anuncia no início do seu “Anticristo” : “É um doloroso, um arrepiante espetáculo que despontou para mim: abri a cortina da corrupção do homem.” Esse é realmente o lado cruel da história da mulher na história, que vem sendo constantemente violentada em todos os sentidos pelo homem, privada de um mínimo de igualdade que poderia ter diante de outro ser igual que o cristianismo com sua suposta verdade absoluta desfigurou no ocidente, no oriente não muda nada, mas o foco  aqui é outro.
 Este anti-Cristo com o símbolo do gênero feminino no final, representa essa igualdade ao masculino- sagrado e assim como Nietzsche manifestou aquela posição contrária em ceder a outra face, a esposa assume sua sacralidade e oferece ao homem todo o sortilégio que ela acumulou em séculos. As cenas na floresta nos dão a sensação de caminhar sobre o que está se desfazendo ou derretendo e os animais trazem um forte elemento simbólico, pois em determinado momento, quando vai ocorrer a “corporificação/sagração”, onde se dá o nascimento e a já confirmada morte do salvador, os animais se apresentam como os três mendigos simbolizando os magos.
A cena que mais chocou os espectadores é a cena em que a esposa destrói o pênis do marido e ao final se auto-mutila sexualmente, concretizando a necessária igualdade. É uma grande besteira e hipocrisia dizer que um filme desse nível seja todas essas atrocidades que deixa os hollywoodianos de cabelo em pé, pois nada se compara às atrocidades praticadas pelos homens contra as mulheres na história e Lars von Trier quer deixar isto bem claro, enfiando o dedo lá no fundo da ferida e também entra a necessidade de expressar conforme a necessidade de cada um. Lars von Trier não é documentarista, nem cabe em Hollywood; e como disse Aristóteles: “A finalidade da arte é dar corpo à essência secreta das coisas, não copiar a sua aparência”.
A cena final explode na tela de maneira inesquecível: Corpos se amontoam ao redor do marido enquanto ele caminha atônito. Ele pára, colhe alguns morangos e os come, experimentando a doçura da morte, numa clara referência ao Bergman de “morangos Silvestres”. Olha para trás e vê uma multidão de mulheres sem rosto vindo de todas as direções. São essas as mulheres anônimas que sofreram nas fogueiras, nos estupros, nas guerras e na ausência de sua própria existência, soterradas pela sombra de um mundo masculino que se expande até ao sagrado.



Ninil




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