sexta-feira, 29 de maio de 2009

Rua

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Get up

a James Brown


O concreto aguardava ansioso
os passos quebrados que o iluminavam.
Os muros exibiam suas novas cores
misturando-se à melodia das calçadas.
A rua oferece seu inebriante odor
ao corpo desacostumado à inércia,
subjugando os passos ao inevitável percurso
rumo ao fluxo de vida que explode
na insaciável necessidade de mover-se
entre o ritmo e a poesia.
Os corpos resistiam à tentação
de lançarem-se de uma só vez na plenitude
conquistada sob o signo movimento.
A rouquidão de um grito que irrompe selvagem
do fundo da garganta da alma
embebido no mais possante groove,
liberta os corpos da angústia estática
que os limita a agir na mera função
de corpos caminhantes sob a gravidade,
instaurando em forma de dança
a necessidade abstrata de locomoção
de um ser configurado sob o movimento
que constitui seu próprio tempo.
A música desaba sobre os corpos,
marionetes da abstração rítmica,
deflagrando o concretizado combate
entre o som e o movimento.
Todos os freios e amarras invisíveis
sucumbem à necessidade de instalarem-se
à pulsão crescente e nervosa que sacode o chão,
invadindo os corpos em sua singular liberdade,
criando uma multiplicidade de espasmos
suprindo os anseios primitivos de libertação,
mediante a possibilidade de elevação
que se configura sob o efeito da música.

Ninil




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terça-feira, 26 de maio de 2009

Mr. "Hydenil"

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Mr. "Hydenil"

Geralmente essa sensação nasce de pequenos vislumbres espontâneos que deslocam meu ponto central de racionalidade à instantes onde qualquer vínculo com a lucidez é dissipado, mas acontece somente no início, após a total imersão do meu ser nesse pântano de sensações atordoantes, os passos parecem se desenvolver numa firmeza nunca antes experimentada pelos pés. Todas as atitudes surgem plenas de encanto, elevando a um estágio quase sacro, sobrepondo-se à estranheza e ineficácia do estado real. Uma apatia ao mundo supostamente colocado como paradigma a uma existência concretamente normal, me afasta desses lugares onde tudo funciona de acordo com as regras do bom senso. Os passos não hesitam em perderem-se onde a miséria se mostra tão clara quanto sufocante, os becos fétidos com seu amontoado de mendigos fedorentos e seus cães sarnentos me enchem o peito de contentamento, dificultando esconder meu regozijo diante de tais imagens. A violência das ruas me excita a tal ponto, que me embrenho ás costumeiras discussões de bêbados e contamino ainda mais os adjetivos proferidos das bocas desdentadas em direção ao seu oponente. Alegra-me visualizar os crimes estampados nos cadernos policiais desses jornais imundos, imagino o ambiente todo repleto dos mais variados tons de vermelho, os gritos e gemidos ecoando pelas ruas cinzentas, espalhando por calçadas, portas e janelas, a dor em seu estado bruto. As lembranças que me são negadas por ter uma existência construída por outro ser que desconheço, é alimentada por toda sujeira do mundo, toda aquela que é produzida e negada. Rego essa quase-memória com a mais pútrida água, reiterando minha aproximação ao que existe de mais perverso na construção do caráter humano. Anseio pelo caos regendo as atitudes das pessoas, aguardo pelo dia em que todos se odeiem mutuamente, isto não está longe de acontecer, percebi isso ao ver através dos olhos do meu duplo, o Dr. "Jeknyll", ao retirar da cabeça de uma criança um pequeno fragmento de chumbo, desferido da arma de um pai enlouquecido. Sinto-me completamente bem instalado dentro da maldade que em mim se configura como razão de ser, pois sei que todos possuem uma porção compatível com a minha, eles apenas a guardam ou a escondem na mais profunda caverna do ser, pronta para ser visitada a qualquer momento, enquanto eu recebo a alcunha de monstro ao expô-la em sua clareza e real identidade, arremessando ao longe a máscara que constrói o dia-a-dia.

Ninil





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quinta-feira, 21 de maio de 2009

O Canto das Sirenes

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O Canto das Sirenes
Ao Mécanique Vivante


Nenhum artefato bélico zumbia pelos ares
derramando seu vômito destrutivo sobre nós,
nem o chão tremia sob o avanço de tanques,
tampouco a morte sussurrava seu canto obscuro.
Outras armas disparavam uma profusão de acordes,
enlouquecendo cada centimetro do trêmulo concreto.
A paz reinava serena entre o cheiro de mijo
que inundava cada passo na velha calçada
suportando o balé de pernas trôpegas recusando o fim do dia,
num envolvente embate de corpos extasiados.
O grito das sirenes desabava seu indelével instante
convocando os corpos em magnética condução
ao mergulho na explosão da célula nervosa
construindo a verdade na longínqua sonoridade
escorrendo pelos vidros e paredes dos prédios
varrendo o canto das calçadas e as luzes do viaduto.
Convocava os corpos displicentes e dominicais
aperceberem-se de si , no complemento circundante,
descobrindo a totalidade no corpo do som,
no canto que o instrumento rege como verdade.
O instante que pode ser mera experimentação
de notas exploradas além do risível satisfatório
ou um mergulho asfixiante na substância total
da música que esfacela qualquer princípio...
de finitude da constituição sonora do ser.


Ninil







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