sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Revelando São Paulo

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Revelando São Paulo


Numa época em que definir a identidade cultural de um povo é uma penosa busca dos grandes teóricos e pesquisadores que tentam decifrar a complexa teia social (pois a efemeridade como elemento de sustentação de uma sociedade, que se alimenta de sucessivas buscas referenciais, sustentadas por uma estrutura solidamente erguida sobre a real ordem social: O mercado de consumo, paradoxalmente elabora a identidade líquida que impossibilita a solidificação dos argumentos identitários, como observou Zygmunt Bauman) O Festival da Cultura Popular Paulista Tradicional, O Revelando São Paulo, traz um pouco daquilo que, mais do que uma tradição, é uma forma de resistência espontânea, libertária e poética do povo.

O Revelando são Paulo é um projeto que foi desenvolvido pelo grupo Abaçaí Organização social de cultura, que há quatorze anos, traz para São Paulo uma amostra da rica tradição cultural do interior paulista. Durante nove dias, são mostrados os mais variados sons, danças, culinária e artesanato do estado. Todo o entorno do parque da Vila Guilherme ficou com ares das festanças do interior, mas não nos deixemos enganar pela imagem bucólica da cena, muitos ali estavam com o olhar carregado de nostalgia, como se toda a indumentária e dança daquelas pessoas tivesse uma representatividade apenas exótica e arcaica, fazendo valer a provável modernidade através da foto de um celular.

Numa belíssima descrição da cultura popular no livro “A Cultura popular na Idade Média e no Renascimento - O contexto de François Rabelais” de Mikhail Bakhtin, o autor afirma: “A multidão em júbilo que enche as ruas ou a praça pública não é uma multidão qualquer. É um todo popular ,exterior e contrária a todas as formas existentes de estrutura coerciva social, econômica e política, de alguma forma abolida enquanto durar a festa” e continua... “Essa organização é antes de mais nada, profundamente concreta e sensível. Até mesmo o ajuntamento, o contato físico dos corpos, que são providos de um certo sentido. O indivíduo se sente parte indissolúvel da coletividade, membro do grande corpo popular. Nesse todo, o corpo individual cessa, até um certo ponto, de ser ele mesmo:pode-se, por assim dizer, trocar mutuamente de corpo, renovar-se(por meio das fantasias e máscaras). Ao mesmo tempo, o povo sente a sua unidade e sua comunidade concretas, sensíveis, materiais e corporais.”( Pag.222)



A intenção não era fazer essa longa citação, mas Bakhtin descreve com tanta propriedade os elementos essenciais de interação do povo, que fica difícil conter a mostra de apenas algumas linhas do seu belo texto. Talvez não haja necessidade de dizer mais nada depois desta citação, mas é preciso dizer que a sensação de atemporalidade e contentamento diante de artistas verdadeiros(que não se sentem assim)que traduzem em danças e sons, um estado de identidade que permanece resistindo à lâmina do tempo ante ao grande engodo do rolo compressor da globalização que suprime importantes fatores sociais locais, por uma linguagem que se estabeleça como vínculo mercadológico em todos os sentidos, ou seja, o Neo-Colonialismo disfarçado de piedosa inclusão.


Sobre a questão musical que envolve todas estas manifestações, sinto-me incapaz de definir o amontoado de sensações que me sacudiam a cada grupo que se apresentava. A riqueza sonora é tamanha que, quando algum cantor surgia derramando seu estranho e belo canto, aquilo me remetia a lugares geograficamente longínquos como Índia ou Oriente Médio, um canto que trazia uma fonética africana com ritmos de cantos indígenas. Impossível definir antecipadamente o que poderia sair daquela voz, que contenta-se em viver no meio rural, uma voz carregada de toda ancestralidade que não se perdeu em necessidades contínuas de mudanças, que na verdade é apenas a renovação do guarda roupa identitário mercadológico imposto pelos simulacros.

Assim como outros cantos e sons de outras partes do planeta, o Brasil tem essa riqueza grandiosa que ainda sobrevive, devido ao esforço de pessoas que acreditam na beleza e importância da cultura popular tradicional, que empunhando seus tambores, rabecas, agogôs, alfaias...vão perpetuando a poderosa sonoridade do Maracatu, samba de roda, Coco, Congada, Jongo...e outros tantos belos sons que não tocam em rádio, que não fazem mais parte da vida das pessoas, mas estão aí, sobrevivendo com a mesma beleza e singularidade, que fazem da cultura popular um dos mais importantes gritos de resistência ao óbvio e ao efêmero.


Ninil




Fotos: Ninil

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