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Foto: NinilLázara
À minha mãe, que me ensinou o sentido poético das coisas.
Não poderia nem deveria ser de outra forma
a dissolução das formas que nunca foram
codificadas e decoradas na linguagem usual
que estabelece o diminuto status social.
O motor do peito emperrou aos sessenta,
trazendo o desconhecido e ansiado conforto
que nunca se apresentou à firme carcaça.
Aos dez conheceu o abandono umbilical
entre vassouras, fuligens e constantes chibatas,
engolindo no silêncio da abundância lacrimal
a secura da vida que trincava o caminho do ser
diante da necessidade de fugas contínuas,
amparada entre os lábios embebidos em álcool
de alguém cuja a parceria libertadora não houve
sequer a mão estendida quando o solo se foi,
as grades ampliaram-se em fêmea função
de mero objeto reprodutivo e dispensável.
O sopro do abandono voltou a sacudir os ossos
acostumados á fustigação contínua dos dias,
mas esperançosos na brisa sobre as cavidades.
A luta solitária se confirmou numa estrada infinita
junto aos pedaços constituídos na maternidade,
refúgio do corpo ofegante em múltiplos abraços.
O corpo conheceu enfim um descanso forçado
para a frouxa pele que abraçava os insistentes ossos
postos forçosamente na horizontalidade hostil
de um leito que suga a totalidade do corpo
na mais ampla ineficácia dos sentidos,
sucumbidos sob o peso da mão da usura
que silencia e sufoca inúmeros corpos salubres
sob o veneno que inunda de beleza as lavouras
ampliando a miséria daqueles que sobrevivem
em precária condição orgânica funcional.
Os frágeis ossos romperam em fúria colossal
o magnetismo abismal do sufocante leito
dissolvendo o odor de impotência diante da fome
que se alimentava da pequena e barulhenta tribo.
Entre panelas, roupas, faxinas e benevolências
o caminho se fez em luta e agrupamento de forças
recolhimento de pedras, colheita de mágoas e risos
na constituição do imponderável sobreviver.
O mundo se fez palco de amplas observações
diante dos ensinamentos ignorantes à escrita
e mergulhados na mais profunda sabedoria
que grafia alguma há de medir a magnificência.
O assobio entre as inúmeras e sorridentes plantas
ou o canto se misturando ao bater de roupa
ecoam suaves na memória em buscas constantes
daquilo que torna a insistente dureza dos dias
na vociferação da real beleza da existência
construída sob o impetuoso motor do peito
que urra aos ventos a inigualável vestimenta
que é o próprio caminho a ser percorrido
entre trancos, silêncios, perdas e risos,
a beleza inundada nas mais variadas tonalidades
reluzindo o valor da história de cada um.
Os chinelos, as broncas e os afagos constituíram
o valor da construção de cada etapa da existência
regido pelo mais sublime e severo dos seres.
Os ombros carcomidos do peso constante
instaurados pela obrigação auto-implantada
da ligação com as vidas construídas no mundo-cão
aliviaram-se ante o direito em respirar tranqüilidade
com apenas um pulmão, mesmo que doente
por alguns instantes, mesmo que dolentes.
Mas o motor enfraqueceu-se pela estrada,
o riso suplantado em discreta angústia,
reaviva somente quando os pedaços espalhados
postavam-se ao redor da antiga mesa
na algaravia que silencia a insistente dor.
Não poderia, nem deveria ser de outra forma,
a engrenagem que cuspia vida por todo o corpo
repentinamente interrompeu o ritmo frenético,
silenciou e ouviu seus outros cinco motores
ritmados ao percurso que cabe a cada um.
Não foi em vão a estrada que construístes,
pois em cada passo ressoa um pouco de você.
Ninil
Foto: Ninil
[abrupta fúria dos elementos, na mão condensados; férteis o ventos onde ressoam estas palavras]
ResponderExcluirum imenso abraço
Leonardo B.
Adoráveis estes ventos que atravessam o Atlântico e me enchem de alegria com a visita deste grande poeta. Obrigado Leonardo!
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirO que é curioso, é que eu estava pensando em fazer um texto sobre a minha mãe também...
ResponderExcluirA sua poesia é carregada de uma simplicidade tão cheia de sabedoria, que me convence cada vez mais que para se ter uma vida rica, nem sempre é necessário os livros... A vida é o mais complicado dos livros, e nela, achamos os nossos sertões atribulados, mas também a nossa paz, um refrigério que se manifesta de forma simples, mas plena...
[Uma lágrima caiu do meu olho lendo a sua poesia...]
Realmente lindo, Ninil...
Beijo!